3) Espaços diferentes para funções diferentes

Cada organização tem sua própria temporalidade e sua própria distribuição dos espaços. Espaços diferentes existem para cumprir funções diferentes em tempos diferentes. Essa diferenciação ajuda a definir e distribuir as nossas ações, tarefas e responsabilidades.

Podemos definir os espaços de uma organização em cinco tipos. As funções de cada um desses espaços serão explicadas nas páginas adiante.

    1. Base social. Espaço público no qual a organização realiza sua prática social.

    2. Núcleos. Espaços deliberativos privados do grupo. As participantes se reúnem nos núcleos para discutir seus assuntos internos, tomar decisões, planejar ações e fazer auto-avaliações. Uma organização pode ter vários núcleos e cada núcleo pode ter várias comissões e GTs.

    3. Comissões. Espaços executivos privados. Nas comissões, as tarefas internas da organização são responsabilizadas e cumpridas por um grupo reduzido de pessoas.

    4. GTs / grupos de trabalho. Espaços executivos públicos ou privados impulsionados pelos núcleos. Neles, os objetivos e as estratégias de atuação social são aprofundados e levados à prática.

    5. Articulação. Espaço deliberativo privado que agrega todos os núcleos através de Assembleias e de Conselhos Representativos.

Por que diferenciar os espaços? Por que se preocupar com articulação, comissões ou GTs? Não é possível cuidar de todos os assuntos no mesmo espaço de reunião, com todas as pessoas presentes?

Talvez esse seja o modelo mais comum entre os grupos autônomos, apesar de ser extremamente ineficaz por dois motivos. Primeiro, quanto maiores as pretensões de um grupo, mais tarefas ele tem. Segundo, quanto maiores são as reuniões, mais cansativas e menos inclusivas elas são, já que impedem a participação de pessoas que não têm o tempo necessário.

Quando a organização cresce, as pretensões são altas e o tempo é curto. É necessário otimizar o tempo, distribuindo as tarefas entre o maior número possível de pessoas.

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Todas as participantes contribuem na elaboração das regras e do funcionamento de seus espaços. As normas da organização podem ser formalizadas em um documento interno de descrição da estrutura da organização (ver seção 5). Isso oferece três vantagens:

  1. Garante que as normas da organização sejam elaboradas de forma consciente e coletiva, favorecendo o respeito mútuo e a unidade.
  2. Impede que uma minoria domine a organização através de mecanismos informais – como, por exemplo, tomar decisões em espaços impróprios ou sem a presença de um número suficiente de participantes.
  3. Facilita o ingresso e a participação de novas pessoas.

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3.1) Núcleos

Espaços privados de quem participa (e de quem está ingressando) na organização. Neles, as participantes se reúnem para discutir os assuntos internos, tomar decisões, planejar ações e fazer auto-avaliações. São grupos relativamente pequenos (organizações maiores terão núcleos maiores), divididos com base nas características comuns entre as suas participantes (em geral, a proximidade dos seus locais de moradia, estudo ou trabalho).

Cada núcleo funciona como um coração. Bombeia decisões sobre a prática do grupo e recebe de volta os resultados das suas decisões. Depois os resultados são avaliados e novas decisões são tomadas.

Núcleos são espaços deliberativos; as comissões e GTs realizam o que foi decidido. Mas, em uma organização popular, não existe uma separação hierárquica entre “quem manda” e “quem obedece”, entre discussão e prática. As participantes dos núcleos são as mesmas que participam, separadamente, de diferentes comissões e GTs.

Um núcleo não é apenas um coração-máquina. É também um ponto de convergência entre pessoas dessas diferentes comissões e GTs.

No núcleo, cada GT é fortalecido pelo planejamento comum de suas práticas e pela troca de informações, experiências e recursos. Quando diferentes grupos participam de uma mesma organização, ela se torna mais complexa, aglutinando mais pessoas e encontrando maiores desafios. O núcleo forma uma unidade dentro dessa diversidade.

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É importante ter algumas normas sobre o funcionamento do núcleo. Abaixo estão quatro sugestões básicas que podem ser desenvolvidas e adaptadas, de acordo com as características de cada organização.

    1. As reuniões de um núcleo só podem ocorrer quando tiver quórum (número de participantes presentes) de maioria simples. Exemplo: se o núcleo é formado por 6 ou 7 pessoas, a reunião só pode acontecer se tiver pelo menos 4 presentes (maioria simples). Se não tiver quórum, as pessoas presentes podem se ocupar de assuntos e tarefas das comissões ou dos GTs, mas não terão poder deliberativo.

    2. Cada núcleo (em caso de organizações articuladas) tem um número mínimo e um número máximo de participantes. Ultrapassando o número máximo, o núcleo se divide. Reduzindo-se a menos que o mínimo, junta-se com outro. Exemplo: Em uma organização pequena, os núcleos podem ter entre 5 e 13 pessoas. Se um núcleo chega a 14, divide-se em dois núcleos de 7. Se chega a 4, junta-se com outro núcleo com número pequeno de participantes.

    3. Cada reunião deve ser preparada e mediada por uma comissão, seguindo um padrão mínimo, e deve ser relatada em uma ata, que deve ficar disponível para todo o núcleo. (Ver seção 4)

    4. As deliberações são feitas com base na busca pelo consenso. Quando não há consenso, pode ser feita uma votação.

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3.2) Comissões

São espaços executivos que visam facilitar e agilizar o trabalho interno, cumprindo tarefas encaminhadas pelos núcleos.

Não realizam nada que não tenha sido deliberado no núcleo, mas têm autonomia na forma como realizam o que foi deliberado. Exemplo: uma comissão de comunicação só vai produzir um cartaz se o seu núcleo tiver lhe indicado essa tarefa. O núcleo não vai discutir os detalhes do cartaz, nem suas cores e imagens, nem a disposição das informações. Tudo isso é tarefa da comissão.

O grupo como um todo deve confiar nas comissões e respeitar seu trabalho. Caso contrário, o trabalho será frustrante e dobrado: a comissão faz o trabalho e o núcleo refaz. Por isso, é muito importante que as comissões sejam assumidas apenas por pessoas que participam ativamente dos núcleos, nunca por pessoas ausentes ou “de fora”.

As comissões devem ser rotativas para 1) promover o aprendizado e desenvolvimento de todo o grupo e 2) impedir a formação de uma hierarquia no grupo. No entanto, o tempo de rotação não pode ser curto demais, pois deve permitir que o trabalho da comissão adquira coerência.

Será melhor se cada comissão for composta por um grupo pequeno de pessoas com diferentes níveis de experiência, alternando as entradas. Dessa forma, cada pessoa que entrar em uma comissão pode aprender com a anterior, que está nela há mais tempo, permitindo que os saberes sejam transferidos e acumulados.

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As comissões mais importantes para um coletivo ou movimento são:

  • Mediação: preparação e mediação das reuniões (ordem das pautas, tempo limite de cada pauta, ordem de inscrições e tempo limite de cada fala); garante o acesso às atas, para que as pautas e a agenda sejam de conhecimento geral. (Ver seção 4.1)

  • Recursos: gestão de recursos físicos e financeiros; garante que o grupo tenha acesso e conhecimento sobre cada um dos recursos disponíveis: quais são e com quem estão.

  • Comunicação: produção de material de propaganda e publicações em mídia impressa ou digital; responsável pelas relações públicas, a não ser que seja criada outra comissão para essa tarefa.

  • Formação: preparação de atividades e textos de formação, de acordo com a demanda do grupo; contato com pessoas que podem oferecer os conteúdos de formação demandados.

Nem sempre é necessário ter todas essas comissões e, às vezes, é necessário ter outras. Para uma ocupação, por exemplo, é fundamental ter comissões de segurança, de limpeza e de alimentação.

Não é necessário que todas as participantes de um núcleo façam parte de uma comissão, mas será melhor para a sua formação política se fizerem.

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3.3) Grupos de trabalho

Os GTs são o canal intermediário entre os núcleos e a base social da organização. Eles desenvolvem as táticas e as ações específicas de cada estratégia (ver seção 5.1), sempre de acordo com as deliberações dos núcleos.

Um GT pode ser fixo ou temporário. Pode ser voltado ao estudo ou à prática. Pode ser organizado por um só núcleo ou por um conjunto de vários núcleos. Pode ser fechado ou aberto para pessoas “de fora”, incluindo de outras organizações.

Com os GTs, a organização pode crescer e se desenvolver em ciclos cada vez maiores, como a casca de um caracol:

    1. Os núcleos mobilizam os GTs.

    2. Os GTs mobilizam o trabalho de base.

    3. A base fortalece os núcleos, aproximando novas pessoas e dando vitalidade e razão às suas atividades de organização.

A função dos grupos de trabalho é trabalhar e há muito trabalho para ser feito. Eles podem envolver temas como: educação popular, cultura de resistência, ecologia social, geração de renda, gênero, raça, preservação da memória, saúde mental, luta identitária, segurança e autodefesa etc.

O ideal é que todas as pessoas da organização participem de um GT, mesmo que dedique um tempo mínimo a ele. Se uma pessoa não tem tempo para participar tanto das reuniões do núcleo quanto das reuniões e atividades de um GT, é preferível que ela participe apenas do GT. Caso contrário, a tendência é que se forme uma hierarquia, a partir da separação interna entre: quem cuida dos assuntos internos (quem toma as decisões) e quem cuida dos assuntos externos (quem atua na prática).

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3.4) Base social e trabalho de base

Esses termos carregam um sentido duplo:

    1. A sociedade tem a forma de uma pirâmide. Existe uma minoria no topo e uma maioria que compõe uma “base”. Quando a base se desloca, o topo é ameaçado de cair.

    2. A base de uma organização é o espaço público no qual a organização realiza sua prática social. Ela é formada pelo conjunto total de pessoas que se encontram ao redor da organização, incluindo as suas próprias participantes ativas.

Toda luta travada no espaço público tem o potencial de atingir a base da pirâmide, mas se essa prática não constrói a base de uma organização, ela não acumula forças. “Deslocar” a base da pirâmide é um movimento arriscado, difícil, exige confiança mútua e solidariedade. Se a organização não constrói vínculos com a comunidade ao seu redor, ela nunca vai derrubar quem está no topo.

Trabalho de base, então, é a luta travada em espaço aberto que tem como objetivo o fortalecimento de vínculos de uma organização com a comunidade à sua volta.

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No trabalho de base, não é só o “outro” que precisa ser formado. A organização transforma a sociedade e é transformada com ela. É um trabalho recíproco. O espaço privado de uma organização não é “alheio” ao espaço público, não se encontra num lugar apartado, exterior a ele.

A organização faz parte da pirâmide. O espaço privado está dentro do espaço público, faz parte dele. Separar um do outro, em geral, leva a uma hierarquização das relações, tratando o “de fora” como ignorante, “aquele que precisa ser transformado”, e o “Eu” como iluminado, “aquele que vai transformar o outro”. Ativistas e militantes, muitas vezes, reproduzem os mesmos vícios que encontram na sociedade.

Ao mesmo tempo, a organização é algo mais do que apenas uma parte da pirâmide. Nela, nós podemos experimentar novas dinâmicas grupais, novas formas de relação. O que podemos construir entre nós serve também de parâmetro do que podemos oferecer à sociedade.

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3.5) Articulação

Como organizar um movimento com dezenas, centenas ou milhares de pessoas sem submeter a maioria à vontade de uma minoria?

Quanto maior o número de pessoas em uma reunião, mais difícil será tomar uma decisão coletiva. Grandes assembleias às vezes parecem uma competição de quem faz o melhor discurso, com algumas votações. Discursos e votações têm sua importância, mas não podem ser o único método deliberativo de uma organização popular. O diálogo e a busca pelo consenso são mais eficientes para a construção da unidade e são mais fáceis quando temos um número reduzido de pessoas conhecidas.

O nucleamento (a divisão de uma organização em diferentes núcleos) impõe alguns desafios:

  • Cada núcleo pode acabar virando uma organização à parte, reduzindo seu potencial e suas forças. Para evitar isso, a articulação deve ser frequente e deve estimular os núcleos a seguirem uma agenda comum de pautas (ver seções 4 e 4.1). A qualidade da articulação depende dos seus assuntos serem previamente debatidos nos núcleos. Assim como as reuniões dos núcleos, as reuniões da articulação devem seguir um padrão mínimo e devem ser preparadas com antecedência.

  • Dois ou mais núcleos podem (e vão) encontrar e desenvolver divergências. Essas divergências devem ser trabalhadas com maturidade e respeito, mantendo sempre atenção aos acordos, objetivos e princípios (ver seções 5 e 5.1) que definem e unificam a organização.

  • Para impedir a centralização de poder nas pessoas que têm mais tempo livre, cada participante deve escolher apenas um núcleo no qual irá focar sua participação – de preferência, aquele que estiver mais próximo de sua realidade social (local de moradia, estudo ou trabalho).

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Para fomentar discussões plurais e para evitar práticas sectárias ou autoritárias, convém definir bem a estrutura e ampliar as possibilidades de espaços. Espaços diferentes cumprem funções diferentes:

    1. Assuntos particulares dos núcleos (sua organização interna e o trabalho de seus GTs) são tratados nas reuniões dos próprios núcleos. Cada núcleo tem uma “autonomia relativa” em relação aos demais: delibera sobre as suas questões particulares, sempre respeitando os acordos gerais da organização.

    2. Assuntos importantes que dizem respeito a todos os núcleos (como os princípios e objetivos do movimento) são tratados em Assembleias, abertas para todas as pessoas de todos os núcleos.

    3. Assuntos pontuais que dizem respeito a vários ou a todos os núcleos (como a troca de experiências, a avaliação e o aprimoramento de suas estratégias) são tratados em Conselhos Representativos, com a participação de representantes dos núcleos. A representação deve ser rotativa e composta por pessoas que participam ativamente dos núcleos. Elas são responsáveis por “levar” a discussão do núcleo para o conselho e por “trazer de volta” os encaminhamentos do conselho para o núcleo.

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3.6) Análise do todo

Existem organizações de todos os tipos. Algumas são simples, outras são complexas. Algumas podem ter um único núcleo com dezenas de pessoas, outras podem ter diversos núcleos, com poucas pessoas em cada um deles. Algumas têm muitos GTs, outras têm muitas comissões. Algumas têm um grande alcance pelo seu trabalho de base, outras realizam apenas ações difusas, não constroem um território.

Nada disso, isoladamente, poderá dizer se a organização é saudável, se a estrutura está funcionando de acordo com os objetivos. O que pode responder essa questão é a análise do conjunto de relações que a organização estabelece.

Cada espaço de uma organização se relaciona com todos os demais. Os núcleos com as suas comissões, GTs e base social. Os núcleos entre si, em assembleias e conselhos. O trabalho das comissões tem resultados nos GTs e na base; o trabalho dos GTs tem efeitos para o trabalho das comissões; e assim por diante.

Organizações são processos históricos. As relações que elas estabelecem não são conexões estancadas, paradas no tempo, como uma ponte de concreto. São relações temporais. Os seus espaços se movimentam, se desenvolvem, se retro-alimentam.

O movimento dos espaços indica se o “Movimento” está vivo.

A imagem abaixo é uma representação gráfica de um coletivo pequeno com três núcleos articulados. Representações como essa podem ajudar na análise de qualquer tipo de organização, identificar algumas falhas e caminhos para uma melhora. Pode ser um exercício interessante “desenhar” e analisar a organização em uma reunião ou assembleia.