6) Política e afetividades

Como disse a Jo Freeman (ver seção 1), não existem grupos humanos “sem estrutura”. Um grupo que não se preocupa com a própria estrutura acaba se estruturando, informalmente, de acordo com o funcionamento da sociedade: de forma hierárquica.

Da mesma forma, não existem grupos humanos “sem sentimentos”. Não faz sentido, portanto, censurar os grupos de amizade e as relações afetivas que nascem da organização, como se amizade e afeto fossem uma espécie de “bactéria” que ameaçaria a vida da organização.

Se a organização está mal estruturada, suas relações podem acender conflitos e rivalidades. Se está bem estruturada, se as pessoas sabem diferenciar os espaços e identificar suas responsabilidades, essas relações alimentam e fortalecem a solidariedade do grupo.

Empatia, respeito e cuidado são valores importantes que, traduzidos em prática, dão sentido às nossas experiências de luta. Devemos investir nesses valores em todos os nossos espaços. Caso contrário, tendemos a reproduzir as relações tóxicas e abusivas que são dominantes na sociedade e que herdamos dela. [ref. 2]

Essas relações podem ser reproduzidas de várias formas diferentes. Elitismo, racismo, machismo, homofobia, transfobia, xenofobia, não se manifestam apenas em ações de agressão física, mas também na agressão psicológica e no silenciamento. A seguir estão expostos dois exemplos comuns.

  • A obrigação de que uma reunião de três horas seja “objetiva” do começo ao fim (interrompendo ou censurando uma pessoa emocionalmente vulnerável, por exemplo, porque ela não está sendo “propositiva”) é uma exigência antipopular, de forte raiz elitista e patriarcal. Quando determinamos que os nossos espaços de luta devem seguir uma lógica mecânica, de “razão pura”, impedimos a participação de pessoas que não foram treinadas para aquela lógica. Na prática, excluímos as maiorias populares. [ref. 3]

  • Outra prática comum é separar o que é uma luta “classista” de uma luta “identitária”, diminuindo o valor de tudo que é taxado como identitário (as lutas das mulheres, da população LGBT, de negros e indígenas). Essa é uma forma de silenciamento daquilo que é associado ao feminino e à negritude. Oculta-se que o feminismo e o movimento negro, entre outros, também carregam demandas estruturais. Ao mesmo tempo, oculta-se que as lutas (nomeadas como) “econômicas” também carregam elementos identitários.

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As práticas de dominação não se manifestam apenas nos nossos comportamentos individuais, mas também na estrutura e na lógica das organizações. Sem desconsiderar a responsabilidade de cada indivíduo, a organização como um todo deve se responsabilizar para impedir que essas práticas sejam aceitas em seus espaços, tanto públicos quanto privados.

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6.1) Espaços “restritos” e práticas de proteção e apoio mútuo

Reuniões meramente “racionais”, sem lugar para a expressão de sentimentos, são espaços excludentes. [ref. 3] No extremo oposto, reuniões com muita descarga emocional acabam sendo ineficientes e podem ser um sinal de que as participantes não têm outro espaço onde possam expressar sentimentos. A criação de um novo espaço (uma comissão para assuntos internos, ou GT para assuntos externos) pode contribuir para ampliar a discussão dos seus assuntos.

Em alguns casos, podem ser formados GTs ou comissões voltadas à proteção ou fortalecimento de grupos oprimidos. Em um GT restrito às mulheres, por exemplo, elas poderão discutir formas de enfrentamento ao machismo. Espaços para pessoas LGBT, negras ou indígenas podem cumprir o mesmo papel.

Inversamente, uma organização também pode formar um grupo restrito a homens. A luta contra o machismo não é um “assunto particular das mulheres”. A responsabilidade maior é dos homens, já que são eles que recebem os privilégios e benefícios do machismo. Um novo espaço, onde possam analisar o que há de tóxico na masculinidade (e buscar sua superação), pode contribuir para a responsabilização mútua.

Longe de “dividir” o grupo, esses espaços agregam as pessoas de cada grupo social, de forma que possam se re-encontrar fortalecidas nos demais espaços da organização.

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A desigualdade financeira é outro fator que pode enfraquecer a organização. Algumas pessoas terão dificuldade de participar porque não têm dinheiro. A organização deve se responsabilizar, pelo menos, pelo transporte e alimentação das participantes com menos renda.

Uma comissão pode desenvolver estratégias e ações para arrecadar recursos e para a manutenção e gestão de um fundo.

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Em casos de agressão, assédio, abuso ou qualquer tipo de violência, uma comissão de ética pode a) oferecer proteção e escuta para a vítima; b) responsabilizar o agressor; e c) buscar uma resolução para o conflito. Se não for possível uma reconciliação entre a vítima e seu agressor, a segurança da vítima deve ser priorizada.

Para tratar desses casos, alguns grupos atualmente têm trabalhado com o método da justiça restaurativa.

A formação de uma comissão oferece três vantagens:

  • Impede o silenciamento da vítima, que poderá acontecer caso a agressão seja tratada nas reuniões de núcleo como “uma pauta entre outras”, cronometrada para caber no curto tempo de uma reunião.

  • Impede a super-exposição da vítima, já que ela não será mais obrigada a falar sobre a agressão no meio de todas as demais pessoas.

  • Permite que a comissão e a vítima decidam o que deve e o que não deve ser discutido nos demais espaços da organização.